Partículas suas em mim

Dá-me qualquer coisa que seja, peço-te - Qualquer coisa.

Um ponto desprezível no espaço é um aprazível donativo, vindo de tão nobre figura. Qualquer coisa já é uma dádiva, o combustível que eu quero sugar – (ab)sorver, é o combustível que necessito para sentir os ventos do meu arfar e as marés das minhas veias. Com ele, só com ele, sinto-me apoiado, apesar de saber que não tenho apoio; sinto-me impulsionado, apesar de saber que não tenho impulsão; sinto-me amado, apesar de não ter quem me ame. Agarro-me com robustez à ideia de que sentir é melhor do que saber. Pelo menos eu sinto isso.

Vês a tua passagem obstruída: nas tuas redondezas, desdobro-me num ilimitado sedutor: o meu corpo floresce, abranjo uma imensidão de terra e mar: tudo. Tu mereces mais do que o meu um metro e sessenta centímetros.

Por um momento, continuas irrepreensível.

Noutro momento depois do último momento, vociferas num misto de relutância e falsa condescendência: “Para ti? Que tal o meu dedo mindinho?”, apontando-o com impetuosidade para mim, enquanto deixas soltar um esgar frio e desapiedado.

Agarro-me a ele como quem agarra a vida com sofreguidão: já me deixa ver, viver, avultar. Agarro-me a ele porque sei, sim, sei, que, não o fazendo, a competência de agarrar não fazia sentido: eu só sei agarrar para te agarrar. Agarro-me a ele porque sei que, apenas e só amarrado a ti, o inferno é habitável e as trevas um lugarejo dócil.
Com altivez: tu começas a jornadear em meu corpo, agarrado, de forma vívida e prepotente; arrasto-me, de forma lívida e impotente.
Resvalando e deslizando: sinto o chão. Sinto as suas entranhas, ele sente as minhas. Sinto a sua rugosidade macia, o seu atrito brando, as minhas roupas já despedaçadas a comungar com ele. Sinto o meu corpo a complementar-se com este, a criar sentidos laços de amizade, a emitir sons ternos ao seu ouvido. Sinto-me. Depois, numa daquelas sarjetas em que escoam as águas sórdidas de louças mal lavadas, o teu gracioso dedo abala, esconde-se como naquelas brincadeiras de criança. Ainda senti o seu suor, o seu toque viciante, a sua maciez, a sua impressão digital bem definida. Pela última vez, ainda o senti: senti-o como se esse fosse o meu único desígnio na vida. Agora, caio, rotundamente e por completo, no chão já frio. Tento chamar por ti, gritar, bradar como se a minha vida dependesse disso. E dependia. Não consigo. As letras imbecis, obtusas e mentecaptas escapam-me, não querem j-u-n-t-a-r, com as suas ideias revolucionárias. Algumas MAIORES, outras menores, mas sempre imbecis; obtusas e mentecaptas.

A minha vida a turvar.
Intrépida. Sagaz.
Estúpida.

Com dificuldade, volto o meu corpo prostrado. Tento focar o meu olhar no céu: “oh, que azul tão macio”. Fecho os olhos.

Postagem de Adriana Vargas de Aguiar

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