Hoje é a minha vez. Eu estive revendo antigas anotações e encontrei vários contos antigos de uma série que na época chamei de Contos Antropofágicos. Hoje em dia esses contos estão espalhados em folhas avulsas ou perdidos dentro de livros e cadernos que eu juro todos os dias que irei organizar. Enfim, espero que gostem.
O espelho tornava evidente. O coração lhe faltava. Desde tenra idade tudo o que via ali, ao lado do seio esquerdo era um enorme buraco. Na aflição pela sobrevivência foi preenchendo aquele vão com fios que agora, passados tantos anos, se arrastavam pelo chão, e a prendiam no alto da torre mais alta da cidade de concreto.
Não reclamava de sua condição. Estava viva. Mas conforme crescia, algum outro órgão se rebelava, como se aquele rombo que trazia no peito fosse uma porta por onde pudessem escapar. E novo fio o aprisionava.
Chegara a vida adulta já ciente de que, não encontrasse uma forma de fechar a porta que lhe fora aberta no coração se perderia para sempre em um monte de fios amontoados e empoeirados no alto daquela torre, sozinha para sempre.
Podia ver lá embaixo as sombras e os ruídos das pessoas. Debruçava-se com cuidado na janela e, com mãos trêmulas, jogava pequenos bilhetes que caiam como flocos de esperança pela calçada. Mas nunca, em nenhum momento, tais mensagens foram respondidas.
Foi perdendo a esperança.
Um dia, ao analisar com cuidados todas as partes de seu corpo percebeu que os fios que agora pulsavam em seu peito como veias expostas estavam se infiltrando por seu pescoço como uma serpente subcutânea, em direção ao seu rosto.
Desesperou-se.
Perdesse o rosto como seria capaz de reconhecer a si mesma?
Precisava descobrir onde estava seu coração. Decerto, alguém, em algum momento no passado, o havia levado.
Num ato de esperança, colheu do fundo de sua garganta a sua voz e pediu-lhe, em uma súplica muda, que a salvasse. A voz frágil como um passarinho entendeu o apelo de sua dona e entendendo a gravidade da situação, mergulhou em um fio da parede e por lá desapareceu deixando a mulher na janela, fitando ansiosamente a cidade lá embaixo, os cabelos revoltos pelo vento.
Desde aquele dia, a voz iniciou sua árdua tarefa, implorando nos telefones que iam tocando um a um, numa súplica desesperada e cheia de esperança:
- É você quem detêm meu coração?
Um a um os telefones foram soando e lá do fundo a pequena voz sempre indagava:
- É você quem detêm meu coração?
O tempo se passou. Mas nunca houve a resposta. Os aparelhos se multiplicavam aos milhares e mesmo assim, nunca uma resposta. Tanto tempo longe de sua dona a voz foi ao pouco se esquecendo de sua pergunta e diluída na passagem dos anos a pergunta se tornou apenas um breve sussurro:
- É você quem detêm?
Um dia, passeando por uma praça, já uma sombra quase liberta de obrigação da memória, soou no bolso de um casaco e por um hábito há muito arraigado perguntou:
- É você?
Ao silêncio da surpresa a voz tremeluziu:
- Sou.
Num suspiro a voz deu um sorriso, aliviada e feliz.
- Ah! Então você existe!
Lembrou-se então de sua promessa e num último esforço falou a respeito de uma moça solitária que vivia no alto da torre que por ele aguardava deixando-se finalmente desaparecer, missão cumprida, com um fino e delicado sorriso.
4 comentários:
Nossa, lindo conto. Parabéns.
Você tem talento.
Adorei o conto, bem escrito e profundo, parabéns Gisele!
Uma bela alegoria sobre nossos vazios existenciais... E apesar de tudo, a esperança está lá.
Agradeço a todos pelas palavras gentis!
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