Aquela noite parecia ter sido armada pelo destino. O tempo, rei dos conspiradores, correra sobre asas enquanto eu trocava algumas ideias (na realidade sonhos) com outros construtores de castelos como eu. Findada a prosa, desaquecido os ânimos, as amarras das obrigações puxaram seus grilhões e nos obrigaram a partir, cada qual para a sua morada. Afinal, era preciso estra de pé cedo durante a manhã, engolir um pão com manteiga e assegurar um cantinho no mundo em uma mesinha empoeirada.
Trabalhava então como auxiliar de um escritório de advocacia. Se bem que naquela ocasião, aquele não parecesse ser bem um trabalho. Estava mais para um castigo mal remunerado. Fosse como fosse, tinha de voltar para casa ainda, tomar uma ducha, pôr em ordem as lições de Administração e papear por algumas minguadas horas com o rei dos sonhos e dos pesadelos.
Feitas as despedidas, bati com os olhos no relógio carcereiro e meu coração gelou no peito. Faltavam dez para a meia noite. Não pense você que meu susto se devesse à hora, que por algum motivo inexplicável, o costume fizera funesta. Sobrevivente calejado do século vinte e um, temia mais os lugares comuns que as armações da imaginação. Sou da época em que os assaltantes e os uniformizados metiam muito mais medo que os pobres ossos cobertos por um lençol. Teria de andar por mais de uma hora, noite adentro, até conseguir chegar em casa e as ruas da cidade durante a madrugada não são os lugares mais agradáveis ou mais saudáveis para se frequentar.
Tal pensamento fez com que minhas passadas se transformassem em uma corrida quase que assustada. Era uma noite quente, sufocante. Nas janelas das casas dos arredores uma luzinha de aconchego fazia com que eu ansiasse ainda mais por estar entre as minhas paredes. O silêncio em envolvia como uma cúpula, filtrando os ruídos quase que fantasmagóricos, de tão distantes, que repercutiam pela noite afora.
Aquela não era mais a hora das crianças, adormecidas ou simplesmente hipnotizadas em frente à televisão. Nem a hora dos namorados que se protegiam nas sombras em seu apalpamento do mundo. Nada havia além de meus passos e uma calçada longa e solitária que ia até a avenida, muito mais distante do que eu gostaria.
O longo muro do cemitério me acompanhou por todo o meu trajeto até que eu me deparei com os seus portões estranhamente entreabertos. Normalmente estavam fechados àquelas horas. O relógio gritou que tinha pouco mais que sete minutos para estar no ponto de ônibus. Talvez, instado pelo desespero, uma idéia sibilou em minha cabeça. Se atravessasse o cemitério, conseguiria chegar a tempo de economizar as solas de meus sapatos e não perder minhas preciosas horas de sono. Arquitetando o plano, faltou-me, no entanto, a coragem para executá-lo.
Ali estava eu, na hora morta, prestes a adentrar o cemitério. Decerto, o leitor estará me cobrando minhas palavras anteriores de valentia e desdenho do desconhecido. Mas a tradição e a cultura, e porque não dizê-lo, o medo, estão além das convenções racionais ou sociais. Preso em minhas indecisões durante preciosos segundos, vi surgir um rapaz muito bem apessoado, o que no meu entender significava um visual conhecido da figura de estudante com seu jeans e camiseta. Sem dar pela minha pessoa, adentrou os portões do cemitério meio que assobiando, com seu andar de serelepe humilhando minhas pernas bambas.
Mal dei por mim, vi-me correndo em sua direção.
- Com licença! Desculpe-me incomodá-lo. Se incomoda se eu o acompanhar? Também vou para este lado e estava um tanto... - faltaram-me palavras para descrever minha covardia. Mas o rapaz sorriu de maneira apaziguadora e calma, rara entre as neuroses das cidades grandes.
- Tudo bem. Está vindo do colégio? - Me perguntou.
- Pois é. Vou pegar o último ônibus pro Jardim Silvina e estava meio com medo de perdê-lo.
- A que horas ele sai?
- Meia noite. Quase sempre atrasa uns minutos.
- Então é melhor que nós apressemos o passo.
Segui o conselho do rapaz a quem já considerava um amigo só por me aceitar em sua companhia. O "Cemitério das Lágrimas", como era conhecido, era muito bem cuidado e contava com uma enorme quantidade de túmulos para todos os gostos e vontades. Já o visitara dezenas de vezes pois era ali que repousava minha avó, morta com um derrame fulminante. Mesmo já estando quase no meio do caminho, podia ver com os cantos dos olhos, ao longe, o lugar onde a lápide dela estaria à espera de seus entes queridos, quando estes lhe devotassem algum tempo ou alguma lembrança.
Mas o calor, o silêncio e principalmente a escuridão da noite tem a estranha habilidade de tornar até mesmo o mais cético dos mortais, no mais fecundo escritor de contos terríveis. A imagem de um filme de terror recente, onde os mortos escapuliam de seus jazigos em busca de companhia, se fechou sobre meus olhos com cortinas rubras de sangue. Senti um arrepio na espinha. Comecei a falar, na esperança que o som afastasse de mim tais pressentimentos.
- Você também estuda no "Maria José"?
- Eu já estudei.
Olhei para o seu perfil com o canto dos olhos, tentando calculcar a sua idade. Não parecia ser muito mais velho.
- E se formou em quê?
- Eu não cheguei a me formar - disse, voltando seu rosto jovial para mim e sorrindo. Preso a este movimento, estranhei um pouco quando ele parou. - Aqui está.
Havíamos chegado ao portão de saída. Respirei aliviado. De onde estava, pude observar que o ônibus ainda estava no ponto e os passageiros ainda não haviam embarcado.
- Beleza. Consegui chegar a tempo.
- Legal. Então tchau!
Fez meia volta, atitude que me causou muito espanto.
- Ei? Para onde você vai?
- Vou voltar agora. Vim até aqui apenas para te fazer companhia.
- É mesmo? Puxa, obrigado. Pensei que você estivesse cortando caminho também. Vai voltar sozinho é? - Me senti um pouco culpado ao pensar que ele havia se desviado por minha causa. Com certeza, deveria estar indo para a terceira saída, no sentido contrário.
- Não se preocupe, eu já estou acostumado.
O remorso me impedia de ir até o ônibus enquanto não me assegurasse de que meu acompanhante falava a verdade. Fiquei ainda mais dividido quando vi os passageiros embarcando. Olhei para ele meio em dúvida.
- Tem certeza? Não tem medo de andar pelo cemitério sozinho a esta hora?
O rapaz olhou com tranquilidade e calma para mim e abriu um largo sorriso.
- Quando eu era vivo, eu tinha.
7 comentários:
Gislene, muito legal esse conto. Uma pitada de humor com algo de sobrenatural. Parabéns.
É um daqueles contos de bairro que vai passando de geração para geração na fala das crianças. Mas me fez olhar assustada para os muros do cemitério por muitos e muitos anos. Rs.
Ave fiquei com medo kkkk
Parabéns!
Gislene gostei muito, tem um pouco de mistério, terror, suspense e humor! Um conto bem elaborado !
Abraços Fabi
www.fabianacardosoescritora.wordpress.com
Muito bom!
Parabéns!!!
Gosto de surpresas inteligentes. Adorei o texto!
J.C.Hesse
olá pessoal, sou um escritor novato e estou publicando meus trabalhos no clube de autores
http://clubedeautores.com.br/book/128585--Um_amor__alguns_segredos
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