Subiu no ônibus sem olhar para o motorista. Sabia para onde estava indo por já ter decorado o número da linha.
Pagou o cobrador com o dinheiro trocado, atravessou a catraca com pressa e sentou-se em um banco vazio, onde não haveria mais ninguém por perto. Colocou a bolsa ao lado, para ninguém se aventurar em sentar-se ali a menos que o ônibus estivesse lotado.
Seguiu pelo caminho de sempre, a rotina já acostumada e da qual só precisava olhar de soslaio onde é que estava para não perder o ponto de descer. Contou lugares: restaurante, ponte, farmácia... Fones de ouvido vibrando uma música de que gostava, que é para não ter de ouvir as chatices alheias. Entrou e saiu gente do ônibus, borrões a que nem prestou atenção e nenhuma feição gravou. Alguém pediu para sentar do seu lado, tirou a bolsa despejando-a em seu colo desajeitadamente e bufou em protesto.
Reconheceu a padaria perto do ponto, deu sinal. O ônibus parou guinchando. Ela desceu, mas não sozinha. Esbarrou com um ou outro passageiro tentava subir no transporte, ajeitou a bolsa no ombro e seguiu seu caminho. Passou por um varredor de uniforme laranja que espantava a poeira. Preocupou-se em não sujar os pés mal protegidos por sua sandálias.
Se levantasse a cabeça alguns centímetros, veria que o céu estava limpo e azul. Poderia ter dado bom dia para o motorista ou visto que o cobrador era uma mulher, ter conversado com o moço que sentou-se ao seu lado e descoberto que era um estudante de enfermagem indo ao seu estágio voluntário numa casa de idosos. Poderia ter pedido licença ao varredor e até agradecido por seu serviço... mas não fez nada disso porque estava acostumada a ignorar.
Maria era também ignorada todos os dias no serviço. Sentava-se e trabalhava o dia inteiro, quase nunca recebia um “obrigado” de seu chefe. Alguém jogava uma pilha de papel na sua mesa todos os dias, mas ela não sabia o nome do rapaz. Vez ou outra ainda trocavam olhares de simpatia e cumplicidade de suas lentes míopes, mas seguiam suas vidas, cada um cuidando do seu óculos. Quando descia para a lanchonete almoçar, era atendida sempre pelo mesmo garçom e ele nunca lembrava que ela pedia rotineiramente uma salada verde e suco de limão sem açúcar.
Um ignorando o outro.
Ao final de seu dia, Maria ia para casa repetindo a rotina da ignoração dia após dia. Ela não o fazia por mal, não era má pessoa, fazia porque todo mundo fazia. Uma cegueira social, política e socieconômica.
Uma multidão ocupada em não enxergar.
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Por Mariana Mello Sgambato, que precisa ir ao oculista de vez em quando. Formada em Comunicação Social – Produção Editorial na UAM com diploma em Criação de Roteiro para Produções. Entre suas publicações estão: Beijos & Batom (2012 – 22ª Bienal do Livro de SP), Segredos de um amor de Verão (2013) e Lembre-se de Morrer (2013), todos pela Editora Modo.
Um comentário:
Adorei, uma crítica poderosa, em um texto que mais parece uma crônica do dia a dia.
Parabéns.
J.C.Hesse
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