Não havia nada de comum em Samara: era a garota mais alta de sua classe; magrela; de nariz comprido e os cabelos enrolados. Seu apelido era “Espanador” entre os meninos e as meninas a chamavam de “Vassoura de Bruxa”, que também era o nome de uma doença infeciosa do cacau. Samara não sabia ao certo porque a chamavam pelo segundo nome, visto que, ela não tinha doenças e nem era um cacau... mas não foi peguntar para nenhuma das meninas, preferindo o silêncio. E essa era a maior peculiaridade de Samara, ela não falava.
Não, nossa protagonista não é muda; ela tem voz como todo mundo e aprendeu a falar como todo mundo na idade certa. O problema de Samara era achar que sua voz era feia demais, como os colegas de classe diziam. Ela bem tinha uma vozinha fina e esganiçada como um apito; o que a deixava envergonhada até para dizer “presente” na sala de aula, preferindo simplesmente levantar o braço após ouvir o professor chamar seu nome.
E lá estava ela, com seu braço comprido e esguio erguido para cima, de forma desengonçada, sentada na “mais para o fundo possível” cadeira da classe, com a cabeça encostada na parede e seus cabelos castanhos escuros enrolados presos em uma trança bem justa na cabeça, na tentativa de conter os fios rebeldes e as piadas de mau gosto sobre sua aparência. Usava uma calça jeans azul que deixavam as canelas de fora quando se sentava. Os joelhos ficavam sempre meio erguidos, por ser alta demais. Dava para ver as meias cor-de-rosa infantis que ela usava. O rosto sempre abaixado, tímida. Não era nenhuma beldade; tinha as expressões bem comuns: lábios finos, olhos pequenos e as sobrancelhas delicadas - o que costumava acentuar o cabelo de espanador. Não usava maquiagem, nem jóias, e ninguém sabia ao certo porquê, já que ela não conversava com ninguém e não tinha amigos. A única coisa que ela mantinha em seu rosto, era um óculos gigante e fora de moda, de aros redondos, provavelmente que ela comprou em um brechó ou herdou da mãe em mil novecentos e lá vai bolinha... Samara não era a menina mais linda da classe e nem a mais feia. Só era a mais alta, mais magrela e com o cabelo mais cheio, as vezes a mais mal vestida porque qualquer roupa a deixava desengonçada. Mesmo assim, todo mundo pegava no seu pé desde o primeiro dia de aula, o que apenas ajudou para que a tímida menina se calasse e não falasse nada com ninguém.
Diante de toda aquela visão que qualquer um acharia horrorosa, Vitor estava encantado e não conseguia segurar a sua cabeça, que teimava em olhar para trás de tempos em tempos, por cima do ombro, só para checar como estava Samara e o que ela estava fazendo. Ele reparava que a garota colava a cara no caderno a fim de copiar a matéria da sala, mas tinha muita dificuldade de copiar, sempre franzindo as sobrancelhas e entortando a boca numa expressão hilária de “ahn?” mas que fazia o coração de Vitor saltitar mais que uma perereca dentro do peito.
Maurízzia o cutucou pelo braço fazendo-o virar-se e apontou o professor, pois ele havia acabado de chamar o seu nome na sala de aula e ele, distraído com a esquisitice encantadora de Samara, nem percebeu. Falou “presente”, sorriu para Maurízzia em agradecimento e depois abriu o caderno, para fingir interesse na monótona aula de Química.
Sentia-se um bobo na maior parte do tempo que pensava em Samara. Sabia que se falasse para seus amigos, Cléber ou Henrique, que se sentia assim a respeito da esquisita, logo eles virariam um “Fica com a Maurízzia, ela é linda e gosta de você”.
Realmente, Maurízzia era linda: o rostinho perfeito e delicado parecia uma escultura barroca de um querubim. Olhos bem grandes verdes, lábios pequenos e arredondados e um perfume adocicado encantador. E gostava dele, sim, não dava para negar: ficava vermelha se ele dizia alguma coisa diferente, ou quando ficavam os dois sozinhos e parece que Maurízzia já tinha dito algo para Cléber sobre isso.
Por mais que parecesse promissor escolher Maurízzia - eles eram amigos há um tempo, tinham muita coisa em comum, ela era linda e se davam bem - não dava para mudar a escolha que o seu coração havia feito: que era Samara. Era por Samara que Vitor perdia o chão. Se ela passava meio atrapalhada no corredor, seu dia se enchia de alegria. Se ela faltasse na escola, sentia-se vazio.
Lembrou do primeiro dia de aula, o dia em que a viu. Samara chegou cambaleando pois havia tropeçado em seus próprios pés. Olhou para os dois lados a fim de conferir se alguém havia presenciado aquela cena ficando imediatamente roxa de vergonha e abaixou a cabeça passando por todos. Aquilo chamou a sua atenção: a menina alta como um bambu, calça curta de pescador e camiseta justa de uma banda de rock.
Passou a reparar nela desde então. No começo, achava que era porque ficava esperando um tropeço ou uma trapalhada, tendo ali o seu show de comédia ao vivo todos os dias... mas aos poucos, reparou que sentia algo a mais.
A primeira vez que notou esse interesse a mais foi quando ela tropeçou e caiu na aula de educação física, ralando os joelhos redondos e grandes. Vitor logo se ofereceu para levá-la a enfermaria. Eles não conversaram, já que Samara nem falava, e a menina nem o agradeceu. Mas toda vez que ela o fitava com intensidade, ele sentia um calor por todo o corpo e ficava roxo... não literalmente, já que era um alto moreno de ombros largos e portanto, sua pele escura camuflou o seu desastre. Ao menos a falta de palavras não fez diferença daquela vez...
Vitor tamborilou os dedos pelo caderno e virou mais uma vez para trás, olhando para a garota Espanador de novo. Ela mordia a borracha do lápis, nervosa com os exercícios que ele nem havia copiado. Vitor queria ser corajoso, falar com Samara e chamá-la para sair, afinal, podia levá-la no cinema naquela tarde de sexta-feira, não podia? Fechou os olhos, respirou fundo. Estava decidido ia chamá-la! Era o dia dos namorados, por Deus! Ele tinha que conseguir ao menos sair com a garota de quem gostava!
O problema nunca fora falar com garotas. Para Vitor, isso era fácil! Ele não era tímido, já tinha namorado três meninas e se considerava um grande paquerador. O problema mesmo era a mudez de Samara... não queria ouvir a voz da garota pela segunda vez na vida e acabar levando um grande fora.
Lembrou-se do conselho de seu pai: “Quem arrisca não petisca!” exclamou mentalmente ouvindo até o som da voz do homem gorducho e barbudo que trabalhava demais. E foi por isso que quando a professora de química resolveu dividir a sala para o trabalho do fim do bimestre, que Vitor anunciou:
- Ei, vamos incluir a Samara na equipe. - e no mesmo instante todos os seus amigos viraram-se para ele com caras de espanto. Notando a onda de surpresa que causou, resolveu consertar. - Ela sempre tira nove em química...
- Ótimo. Eu preciso de nota. - Henrique concordou, pois o trabalho salvaria sua média. Já foi anotando o nome da menina. - Você vai lá avisá-la, né?
- É... eu vou. - Vitor ficou em pé e andou até a cadeira onde Samara estava. Seu coração palpitava forte e sua testa transpirava e suas mãos ficaram geladas. Parou bem ali na frente dela, tapando o quadro negro. Samara ergueu a cabeça e quando os olhares se cruzaram, Vitor achou que ia morrer. - Vamos colocar você no nosso grupo, tudo bem? - A menina não disse nada, ficou esperando uma manifestação dele. Aqueles dois olhos em cima de Vitor foram deixando ele nervoso, nervoso.. e ai ele pensou em falar qualquer bobagem. - E podemos ir ao cinema juntos depois, vamos?
Vitor viu o rosto de Samara passar do branco-pálido para um vermelho-intenso-muito-avergonhado na mesma hora. Sensação estranha ver assim tão de cara uma menina ficar sem graça e com vergonha por causa de algo que ele dissera, mas achou até bom. E já que já tinha começado a falar, soltou a língua desenvolto.
- Eu pago o seu cinema e a pipoca! Mas tem uma condição, não pode ficar calada o tempo todo do meu lado, afinal eu quero ouvir a sua voz... ah, e não pode ficar falando só do trabalho da escola, é um encontro, sabe? Vamos depois da aula. Você topa ir, não é?
- Claro que não. - a voz da menina soou como se ela tivesse chupado gás hélio, mas Vitor não ficou com vontade de rir, levar um fora era algo doloroso até mesmo para um atleta sendo rejeitado pela feiosa da turma.
- Ah. - ficou sem palavras. Bem... ao menos tinha tentado. Murchou os ombros e preparou para sair.
- Eu digo, do trabalho. Já combinei de fazer com minhas amigas. - e pontou para duas meninas da classe que estavam de rabicó para cima da conversa. - Mas tudo bem com o cinema... se for o novo filme do X-Men.
- Claro, claro... puxa, adoro X-Men... claro. Eu te espero depois da aula... a propósito, eu sou o Vitor...
- Eu sei, né. - Samara fez uma careta esquisita. Podia ouvir o nome dele todos os dias na chamada, da mesma forma que ele podia ouvir o dela.
- Claro, claro. Te espero depois da aula. - e meio sem jeito, acabou dando um beijo na bochecha de Samara arrancando risinho das duas amigas dela que fuxicavam baixinho.
Samara ficou roxa de timidez, mas Vitor não esperou para ver todas as tonalidades da menina, até porque ele se não fosse moreno também estaria mudando de cor de tanta euforia e timidez ao mesmo tempo... só Samara deixava-o assim, sem graça e ansioso com o mundo. Foi se sentar em sua cadeira com o maior sorriso do mundo.
- E aí ela topou? - Henrique que precisava de nota quis saber.
- Não, ela já tem um grupo.
- Então porque você tá sorrindo desse jeito?
- Isso, meu amigo, é uma outra história! - suspirou.
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Mariana Mello Sgambato, é autora do romance juvenil "Beijos & Batom" (2012), terá mais dois romances publicados em 2013 (Lembre-se de Morrer / Segredos de um amor de verão).
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