“Só Deus sabe meu filho”. Estas eram as palavras do velho Hans, o padre que foi meu preceptor no primeiro quarto do século XI. Lembro daqueles tempos gloriosos, gravados em uma mente que teima em não esquecer, presa a um corpo que não é comido pelo tempo. A culpa não é minha, Deus me fez assim. Ou pelo menos, permitiu que a maldição existisse. Apesar de minha criação cristã, tendo como preceptor um padre, só me sinto vivo cometendo cada um dos sete pecados, ou descumprindo alguns mandamentos.
Valores medievais estão fortemente entranhados em mim. “A hora da refeição é sagrada Samael, comporte-se”; dizia meu velho pai. Porém, o remorso por descumprir tais princípios é suplantado por meus instintos adquiridos, e vez ou outra sou castigado.
Pamplona, Espanha, 14 de julho de 2002.
Era a ultima noite da festa de São Firmino, em Pamplona, na Espanha. Os fogos espocavam e os bonecos gigantes, com grandes cabeças desfilavam entre os populares. Roupas brancas com lenços vermelhos davam um colorido diferente a o fim das festividades do santo, ao som da musica Pobre de mí, um lamento pelo final das festividades. Os lenços vermelhos nos pescoços faziam alusão à degola de São Firmino, representando o sangue.
Sangue.
Fazia pouco tempo que me alimentara, mas tamanha festa emanava um ar pagão, quase animal, pois a bebida entorpecia as mentes de homens e mulheres, inebriava os sentidos. Meus instintos batiam em minha razão, e a lembrança de sangue me fez salivar. Era a gula, tornando-me irracional, fazendo meus olhos esquadrinharem o terreno, tentando encontrar algo especial, afinal, era uma noite de festa. Assim, eu batia um dos mandamentos: Lembra-te do sétimo dia para santifica-lo. Era um dia de descanso e oração, não de festas e profanação. Entre homens e mulheres cheirando a álcool e suor eu caminhei, procurando sobriedade. Casais pelos cantos escuros, com os corpos colados chamavam minha atenção. Meus sentidos percebiam as pulsações e respirações alteradas, pelo álcool e pelo desejo.
Olhei para a sacada de um café, e uma mulher chamou minha atenção, pois ela falava em um gravador e fazia anotações olhando os festejos. Caminhei até o estabelecimento, fui prontamente atendido, sendo conduzido a sacada. Sentei-me em uma mesa ao lado, e notei que se tratava de uma estudiosa, pois sua pasta exibia o brasão de Salamanca.
Eu ouvi:
- “... A festa chega ao seu final, mas os populares seguem na rua. A canção Pobre de mí cessa, dando lugar a outras musicas nada folclóricas; ouvidas em bares modernos. Sabemos que nosso país transpira religiosidade, mas agora, e nas corridas com os touros, percebemos o ar pagão; talvez o mesmo ar que incentivou a Inquisição mais violenta de toda Europa, em épocas passadas”.
Eu sabia bem do que ela falava, pois acompanhei muito do que aconteceu.
- O que gostaria de beber senhor? – perguntou o garçom, com sotaque francês.
- Enquanto estes marranos brincam de São Firmino degolado, me traga um bom Convento San Francisco Selección, por favor. – ao ouvir isto, a mulher olhou-me de soslaio, parando com suas anotações como se ouvisse algo que a ofende-se. Marranos era a expressão que os inquisidores usavam para se referir aos judeus caçados, e significa “porco”. Eu devolvia o xingamento, e ela como espanhola não digeriu meu comentário.
- “Como todas as festas populares, esta que é uma das maiores celebrações do mundo”... – ela seguiu ao gravador.
- Na França existem bonecos assim? Você não acha estes gigantones um tanto idiotas? – perguntei ao garçom, referindo-me aos bonecos gigantes que eram movidos por pessoas durante os festejos. Interrompi mais uma vez o desenvolvimento do trabalho da pesquisadora, que parou de falar, e deixou o gravador sobre a mesa.
- Monsieur, eu não entendo estes festejos. Vou trazer seu vinho.
Enquanto o garçom retirou-se para trazer o vinho, a mulher me olhou. Notei seus cabelos negros presos por palitos metálicos, as pequenas rugas nos cantos dos olhos denunciavam sua maturidade. As roupas largas e os braços robustos davam a ideia de um corpo que não recebia cargas de exercícios físicos.
A fúria espanhola estava refletida em seu olhar, que encontrou o meu por breves instantes, pois desviei minha vista para o povo novamente.
O garçom veio com o vinho, serviu-me uma taça da bebida e saiu.
- É espanhol por um acaso? – ela me perguntou.
- Não, eu sou helvético...
- Entendi, um suíço. Notei que o senhor é tão pálido quanto os costumes de suas terras estéreis, perdidas entre a Itália, Alemanha, França e Áustria. Saiba que esta é uma das festas mais populares do mundo. Respeite o que não conhece.
- Desculpe, é que não estou acostumado a festas que reúnam a “gleba”. – era assim que os pobres eram chamados no medievo.
- Gleba? Você vive em que época? Vi esta palavra pela ultima vez em um livro, semestre passado... – Touché!! Ela caiu na primeira armadilha.
- Desculpe, é que eu estudo História, e...
- Verdade? Estuda História? Eu também!! – pequei mais uma vez. “Não darás falso testemunho”. Menti, pois eu não estudo História, eu a vivi. Estive na Espanha durante vários enforcamentos, nas vésperas da partida de Colombo em direção da América.
- Meu nome é Malena, Pós Doutora em História da Universidade de Salamanca. Estou tentando escrever um artigo sobre festas populares.
Muitas das festas populares eram banhadas em sangue, como aquela. A brisa da noite trazia a meus sentidos treinados o cheiro do sangue dos touros, misturado ao sangue dos feridos nas corridas, que aconteceu ao meio dia.
- Tentando? Não está conseguindo escrever?
- O senhor me atrapalhou.
Pedi ao garçom outra taça, e Malena começou a conversar. A aliança na mão esquerda denunciava sua condição. Eu falava de documentos antigos, e eu de detalhes de alguns acontecimentos que presenciei no passado, como se fossem resultados de uma pesquisa.
Eu usava uma camisa polo justa, com os botões abertos. Meu corpo bem feito contrastava com meu rosto de garoto. Consciente destes fatores, somados a conversa carregada de conhecimento, exercitei a Vaidade. Eu notava as reações do corpo da acadêmica, que corria seus olhos por meus braços, vendo que o conhecimento era emoldurado por um corpo atraente. Seus pêlos se eriçavam, e calafrios subiam por sua espinha a cada fato do passado que eu narrava.
Mais vinho. Ela ria a toa a esta altura da noite. Ela me contava de gafes de colegas de pesquisa, que confundiam datas, nomes de reis, imperadores e papas. Era o seu mundo. Era do que ela entendia, era do que ela falava, e eu ouvia solícito.
Era o que a excitava.
Eu me dizia especialista em história do Sacro Império Romano Germânico, e a cada pergunta dela que eu respondia, seu corpo reagia. Olhei no fundo de seus olhos, e a fúria espanhola admirava meus relatos. Ela não usava adornos reluzentes, mas seu intelecto brilhava por si só, eu também não usava adornos, a não ser pelo anel opaco que eu trazia no dedo anelar direito. Era o anel de um dominicano inquisidor, que matei logo no inicio dos Tribunais do Santo Oficio, em meados do século XI, retirando o adorno do cadáver.
- Me de sua mão, eu quero lhe mostrar uma coisa. – ela estendeu a mão, e aproximei minha cadeira da sua, ficando quase ao seu lado. Tirei o anel de meu dedo, e segurei seu pulso. Ela tremeu, quando meus dedos passaram suaves por sua pele. Depositei o anel em sua mão, e ela falou:
- É um anel de inquisidor?? Não acredito que seja verdadeiro!!
- Sim, é verdadeiro sim. Nunca viu um destes Malena?
- Vi sim, em exposição em um museu de Portugal. Você me emprestaria este anel para expor em Salamanca? – exercitei a Avareza.
-Infelizmente não será possível. Este anel foi conseguido em uma situação especial. Nunca me separo dele, e em poucos dias devo voltar para a Helvé...
- Suíça, você voltará para a Suíça. Ninguém mais conhece a Helvécia, a não ser um suíço. Faz muito tempo que a comunidade internacional não usa este termo para identificar seu país. – ela riu – Você realmente não parece ser destes tempos!
- É um exemplar impressionante, não? Veja os detalhes, os símbolos... – levantei-me e fui para suas costas, e coloquei meu braço por sobre seu ombro. Ela segurava o anel com a ponta dos dedos, e eu aproximava meus lábios de seu ouvido. Passei o dedo indicador pelo anel, e meu peito encostou-se levemente em Malena. Seus cabelos cheiravam a babosa, sua pele cheirava a um tipo de óleo de flores, e seus olhos semicerraram com nosso contato. Seu coração pulsava mais rápido, senti a leve transpiração brotar em suas mãos.
- Sua pele é macia... – encostei meu nariz em seu cabelo e toquei seu ombro. Ela maneou a cabeça, inspirando, e expirando tremula. Luxúria. Um de meus pecados favoritos, e eu dividia com ela, e com seus cheiros, provenientes do suor, de seus cabelos, de suas vergonhas...
- Senhor...
- Samael...
- Sim, Samael, eu nunca... Nunca... – ela arfava confusa – Nunca vi um exemplar igual... Tão conservado...
- Posso mostrar-lhe mais... – falei próximo ao seu ouvido, e meu hálito frio a fez arrepiar-se.
- Não sei se devo... – minhas mãos desceram por seu pescoço, massageando os ombros, descendo logo depois pelas omoplatas, até as laterais de seu tórax, passeando pelas protuberâncias de suas carnes afáveis e macias.
- Uma companhia até sua casa, talvez... – Malena ergueu-se segurando na ponta de meus dedos. Joguei muitos Euros sobre a mesa, e saí levando a pesquisadora comigo, que guardava seus papéis antes organizados, de qualquer jeito dentro de sua pasta. Andamos pela praça onde antes acontecia a festa de São Firmino, até chegarmos a uma ruela. Lá, encostei Malena em uma parede, e a beijei. Sua boca procurava a minha, avida, e seu coração batia como um tambor africano, bombeando o abundante e enérgico...
Sangue.
- Não posso, sou casada... – ela arfou tremulante, mas mesmo assim erguia sua perna esquerda, encostando seu joelho em minha cintura, de forma que passei minha mão por baixo de sua coxa roliça, firme mais pelo excesso do que por tônus muscular. Ela empurrou-me:
- Calma, me leve até o hotel, é aqui perto.
Eu caminhava rápido, puxando-a pela mão.
- Devagar, não sei se já notou, não sou nenhuma atleta. – ela não era nem jovem, nem atleta; mas eu estava avido por absorver um pouco de sua aura; cheia de sabedoria e desejos latentes. Parei diante da entrada do hotel.
- Venha, entre! – fui convidado para entrar. Só faltava ser convidado para o quarto. O recepcionista entregou a chave para Malena. Subimos pelo elevador até o 5º andar, seu quarto era o de numero 501.
Ela abriu a porta e entrou. Um incomodo detalhe, ela não me convidou.
Um problema, na verdade. Ela sumiu pela sala, e uma parte da maldição que limita minhas ações me deteve. Tentei colocar meus pés dentro do aposento, mas uma barreira invisível me detinha.
- Samael? Entre, por favor. – touché.
Entrei aposento a dentro, atrás de Malena, e a alcancei. Segurei firme sua cintura, e beijei sua nuca. A carótida pulsava rubra a meus olhos.
- Acho melhor pararmos por aqui Samael. Nunca traí meu marido, adorei nosso flerte, mas ... – Não dei ouvidos.
- Pare, por favor pare!... – tarde demais. Eu não iria parar. Virei-a de costas, em um movimento violento.
- Pare!! Vou chamar a segurança... – foram as suas ultimas palavras, pois tapei sua boca abafando seus gritos. Exercitei a Soberba. Achei-me onipotente, com total controle da situação. Abri minha boca, meus caninos proeminentes sentiram o ar da noite. Levantei o vestido de Malena, e soltei meu cinto. Senti sua pele quente contra a minha. Meu prazer seria completo, imaginei a sublime parada do musculo cardíaco, proporcionando meu êxtase.
“A hora da refeição é sagrada Samael, comporte-se”; dizia meu velho pai. Sete séculos depois, eu seguia as recomendações dele. Eu poderia ter me esbaldado com uma das bêbadas do festival, que estavam à disposição pelas ruas, mas escolhi com requinte, o melhor entre a gleba; por respeito à palavra de meu progenitor. Um espécime exótico, digno, sábio. Como se orgulharia meu pai.
Quando dirigi a mordida, a dor lacerante que senti em minha coxa desequilibrou-me. A dor era tão forte que soltei Malena. Olhei minha coxa e vi um dos palitos metálicos que prendiam os cabelos de Malena cravado superficialmente em minha perna esquerda. Uma dor intensa subia por meus músculos, e percebi que era um artefato de prata.
Mortal para mim.
Enquanto eu manquitolava em frente a uma janela, tirando o palito de prata da minha perna, Malena olhava-me com olhos enraivecidos, a “fúria espanhola”. Ela aproveitou meu momento de pavor devido à prata que entrou em meu corpo e me enfraqueceu instantaneamente, e empurrou-me contra a janela aberta a minhas costas. O vidro da janela estourou contra minha pele, e a gravidade fez o seu papel. Caí livremente sentindo o ar frio da noite, e ouvindo os gritos de quem passava pela calçada do hotel. Juro que vi o sorriso vingativo de Malena, debruçada na janela pela qual me jogara, de forma que a sorte a ajudou, ou seria melhor dizer que foi seu gosto por prata? Só sei que ela soube que eu era diferente depois que minhas costas estouraram contra a calçada, e mesmo assim levantei-me e corri, mancando com minha perna esquerda. Populares não acreditaram no que viam, e não ousaram se aproximar de mim.
Entrei em um beco escuro e fétido, e vi quando Malena abandonou a janela pela qual me jogara. Foi então que lembrei-me de ensinamentos ancestrais, desta vez, de quem me iniciou nesta “vida”:
“Sempre que for ferido por prata, verá que a ferida vai aumentar descontroladamente. Corte a carne e a pele ferida, até que seu sangue corra limpo, e que sua ferida comece a diminuir. A prata é altamente tóxica para nós, VAMPIROS.”
Comecei imediatamente, usando um canivete que sempre carrego comigo. A dor lacerante quase me fez desmaiar, mas eu tinha que aguentar. A carne fétida e pútrida que cortei da ferida crescente voou pelo beco, até que o sangue correu limpo, e o ferimento parou de aumentar. Em poucos segundos, a maldição fez o resto. A grande ferida começou a diminuir, e fechou por completo. Meu abatimento era tamanho, que o sangue de uma camareira vulgar teve que ser consumido para equilibrar meu organismo, quando voltei maltrapilho ao meu hotel.
Qual será o meu destino?
Como diria o velho padre, “só Deus Sabe meu filho”. Se irei para o céu ou para o inferno, só saberei quando pessoas corajosas como Malena conseguirem dar fim a minha vida, em um dos momentos em que meus instintos adquiridos suplantarem meus princípios cristãos.
“Só Deus sabe meu filho”. Estas eram as palavras do velho Hans, o padre que foi meu preceptor no primeiro quarto do século XI. Lembro daqueles tempos gloriosos, gravados em uma mente que teima em não esquecer, presa a um corpo que não é comido pelo tempo. A culpa não é minha, Deus me fez assim. Ou pelo menos, permitiu que a maldição existisse. Apesar de minha criação cristã, tendo como preceptor um padre, só me sinto vivo cometendo cada um dos sete pecados, ou descumprindo alguns mandamentos.
Valores medievais estão fortemente entranhados em mim. “A hora da refeição é sagrada Samael, comporte-se”; dizia meu velho pai. Porém, o remorso por descumprir tais princípios é suplantado por meus instintos adquiridos, e vez ou outra sou castigado.
Pamplona, Espanha, 14 de julho de 2002.
Era a ultima noite da festa de São Firmino, em Pamplona, na Espanha. Os fogos espocavam e os bonecos gigantes, com grandes cabeças desfilavam entre os populares. Roupas brancas com lenços vermelhos davam um colorido diferente a o fim das festividades do santo, ao som da musica Pobre de mí, um lamento pelo final das festividades. Os lenços vermelhos nos pescoços faziam alusão à degola de São Firmino, representando o sangue.
Sangue.
Fazia pouco tempo que me alimentara, mas tamanha festa emanava um ar pagão, quase animal, pois a bebida entorpecia as mentes de homens e mulheres, inebriava os sentidos. Meus instintos batiam em minha razão, e a lembrança de sangue me fez salivar. Era a gula, tornando-me irracional, fazendo meus olhos esquadrinharem o terreno, tentando encontrar algo especial, afinal, era uma noite de festa. Assim, eu batia um dos mandamentos: Lembra-te do sétimo dia para santifica-lo. Era um dia de descanso e oração, não de festas e profanação. Entre homens e mulheres cheirando a álcool e suor eu caminhei, procurando sobriedade. Casais pelos cantos escuros, com os corpos colados chamavam minha atenção. Meus sentidos percebiam as pulsações e respirações alteradas, pelo álcool e pelo desejo.
Olhei para a sacada de um café, e uma mulher chamou minha atenção, pois ela falava em um gravador e fazia anotações olhando os festejos. Caminhei até o estabelecimento, fui prontamente atendido, sendo conduzido a sacada. Sentei-me em uma mesa ao lado, e notei que se tratava de uma estudiosa, pois sua pasta exibia o brasão de Salamanca.
Eu ouvi:
- “... A festa chega ao seu final, mas os populares seguem na rua. A canção Pobre de mí cessa, dando lugar a outras musicas nada folclóricas; ouvidas em bares modernos. Sabemos que nosso país transpira religiosidade, mas agora, e nas corridas com os touros, percebemos o ar pagão; talvez o mesmo ar que incentivou a Inquisição mais violenta de toda Europa, em épocas passadas”.
Eu sabia bem do que ela falava, pois acompanhei muito do que aconteceu.
- O que gostaria de beber senhor? – perguntou o garçom, com sotaque francês.
- Enquanto estes marranos brincam de São Firmino degolado, me traga um bom Convento San Francisco Selección, por favor. – ao ouvir isto, a mulher olhou-me de soslaio, parando com suas anotações como se ouvisse algo que a ofende-se. Marranos era a expressão que os inquisidores usavam para se referir aos judeus caçados, e significa “porco”. Eu devolvia o xingamento, e ela como espanhola não digeriu meu comentário.
- “Como todas as festas populares, esta que é uma das maiores celebrações do mundo”... – ela seguiu ao gravador.
- Na França existem bonecos assim? Você não acha estes gigantones um tanto idiotas? – perguntei ao garçom, referindo-me aos bonecos gigantes que eram movidos por pessoas durante os festejos. Interrompi mais uma vez o desenvolvimento do trabalho da pesquisadora, que parou de falar, e deixou o gravador sobre a mesa.
- Monsieur, eu não entendo estes festejos. Vou trazer seu vinho.
Enquanto o garçom retirou-se para trazer o vinho, a mulher me olhou. Notei seus cabelos negros presos por palitos metálicos, as pequenas rugas nos cantos dos olhos denunciavam sua maturidade. As roupas largas e os braços robustos davam a ideia de um corpo que não recebia cargas de exercícios físicos.
A fúria espanhola estava refletida em seu olhar, que encontrou o meu por breves instantes, pois desviei minha vista para o povo novamente.
O garçom veio com o vinho, serviu-me uma taça da bebida e saiu.
- É espanhol por um acaso? – ela me perguntou.
- Não, eu sou helvético...
- Entendi, um suíço. Notei que o senhor é tão pálido quanto os costumes de suas terras estéreis, perdidas entre a Itália, Alemanha, França e Áustria. Saiba que esta é uma das festas mais populares do mundo. Respeite o que não conhece.
- Desculpe, é que não estou acostumado a festas que reúnam a “gleba”. – era assim que os pobres eram chamados no medievo.
- Gleba? Você vive em que época? Vi esta palavra pela ultima vez em um livro, semestre passado... – Touché!! Ela caiu na primeira armadilha.
- Desculpe, é que eu estudo História, e...
- Verdade? Estuda História? Eu também!! – pequei mais uma vez. “Não darás falso testemunho”. Menti, pois eu não estudo História, eu a vivi. Estive na Espanha durante vários enforcamentos, nas vésperas da partida de Colombo em direção da América.
- Meu nome é Malena, Pós Doutora em História da Universidade de Salamanca. Estou tentando escrever um artigo sobre festas populares.
Muitas das festas populares eram banhadas em sangue, como aquela. A brisa da noite trazia a meus sentidos treinados o cheiro do sangue dos touros, misturado ao sangue dos feridos nas corridas, que aconteceu ao meio dia.
- Tentando? Não está conseguindo escrever?
- O senhor me atrapalhou.
Pedi ao garçom outra taça, e Malena começou a conversar. A aliança na mão esquerda denunciava sua condição. Eu falava de documentos antigos, e eu de detalhes de alguns acontecimentos que presenciei no passado, como se fossem resultados de uma pesquisa.
Eu usava uma camisa polo justa, com os botões abertos. Meu corpo bem feito contrastava com meu rosto de garoto. Consciente destes fatores, somados a conversa carregada de conhecimento, exercitei a Vaidade. Eu notava as reações do corpo da acadêmica, que corria seus olhos por meus braços, vendo que o conhecimento era emoldurado por um corpo atraente. Seus pêlos se eriçavam, e calafrios subiam por sua espinha a cada fato do passado que eu narrava.
Mais vinho. Ela ria a toa a esta altura da noite. Ela me contava de gafes de colegas de pesquisa, que confundiam datas, nomes de reis, imperadores e papas. Era o seu mundo. Era do que ela entendia, era do que ela falava, e eu ouvia solícito.
Era o que a excitava.
Eu me dizia especialista em história do Sacro Império Romano Germânico, e a cada pergunta dela que eu respondia, seu corpo reagia. Olhei no fundo de seus olhos, e a fúria espanhola admirava meus relatos. Ela não usava adornos reluzentes, mas seu intelecto brilhava por si só, eu também não usava adornos, a não ser pelo anel opaco que eu trazia no dedo anelar direito. Era o anel de um dominicano inquisidor, que matei logo no inicio dos Tribunais do Santo Oficio, em meados do século XI, retirando o adorno do cadáver.
- Me de sua mão, eu quero lhe mostrar uma coisa. – ela estendeu a mão, e aproximei minha cadeira da sua, ficando quase ao seu lado. Tirei o anel de meu dedo, e segurei seu pulso. Ela tremeu, quando meus dedos passaram suaves por sua pele. Depositei o anel em sua mão, e ela falou:
- É um anel de inquisidor?? Não acredito que seja verdadeiro!!
- Sim, é verdadeiro sim. Nunca viu um destes Malena?
- Vi sim, em exposição em um museu de Portugal. Você me emprestaria este anel para expor em Salamanca? – exercitei a Avareza.
-Infelizmente não será possível. Este anel foi conseguido em uma situação especial. Nunca me separo dele, e em poucos dias devo voltar para a Helvé...
- Suíça, você voltará para a Suíça. Ninguém mais conhece a Helvécia, a não ser um suíço. Faz muito tempo que a comunidade internacional não usa este termo para identificar seu país. – ela riu – Você realmente não parece ser destes tempos!
- É um exemplar impressionante, não? Veja os detalhes, os símbolos... – levantei-me e fui para suas costas, e coloquei meu braço por sobre seu ombro. Ela segurava o anel com a ponta dos dedos, e eu aproximava meus lábios de seu ouvido. Passei o dedo indicador pelo anel, e meu peito encostou-se levemente em Malena. Seus cabelos cheiravam a babosa, sua pele cheirava a um tipo de óleo de flores, e seus olhos semicerraram com nosso contato. Seu coração pulsava mais rápido, senti a leve transpiração brotar em suas mãos.
- Sua pele é macia... – encostei meu nariz em seu cabelo e toquei seu ombro. Ela maneou a cabeça, inspirando, e expirando tremula. Luxúria. Um de meus pecados favoritos, e eu dividia com ela, e com seus cheiros, provenientes do suor, de seus cabelos, de suas vergonhas...
- Senhor...
- Samael...
- Sim, Samael, eu nunca... Nunca... – ela arfava confusa – Nunca vi um exemplar igual... Tão conservado...
- Posso mostrar-lhe mais... – falei próximo ao seu ouvido, e meu hálito frio a fez arrepiar-se.
- Não sei se devo... – minhas mãos desceram por seu pescoço, massageando os ombros, descendo logo depois pelas omoplatas, até as laterais de seu tórax, passeando pelas protuberâncias de suas carnes afáveis e macias.
- Uma companhia até sua casa, talvez... – Malena ergueu-se segurando na ponta de meus dedos. Joguei muitos Euros sobre a mesa, e saí levando a pesquisadora comigo, que guardava seus papéis antes organizados, de qualquer jeito dentro de sua pasta. Andamos pela praça onde antes acontecia a festa de São Firmino, até chegarmos a uma ruela. Lá, encostei Malena em uma parede, e a beijei. Sua boca procurava a minha, avida, e seu coração batia como um tambor africano, bombeando o abundante e enérgico...
Sangue.
- Não posso, sou casada... – ela arfou tremulante, mas mesmo assim erguia sua perna esquerda, encostando seu joelho em minha cintura, de forma que passei minha mão por baixo de sua coxa roliça, firme mais pelo excesso do que por tônus muscular. Ela empurrou-me:
- Calma, me leve até o hotel, é aqui perto.
Eu caminhava rápido, puxando-a pela mão.
- Devagar, não sei se já notou, não sou nenhuma atleta. – ela não era nem jovem, nem atleta; mas eu estava avido por absorver um pouco de sua aura; cheia de sabedoria e desejos latentes. Parei diante da entrada do hotel.
- Venha, entre! – fui convidado para entrar. Só faltava ser convidado para o quarto. O recepcionista entregou a chave para Malena. Subimos pelo elevador até o 5º andar, seu quarto era o de numero 501.
Ela abriu a porta e entrou. Um incomodo detalhe, ela não me convidou.
Um problema, na verdade. Ela sumiu pela sala, e uma parte da maldição que limita minhas ações me deteve. Tentei colocar meus pés dentro do aposento, mas uma barreira invisível me detinha.
- Samael? Entre, por favor. – touché.
Entrei aposento a dentro, atrás de Malena, e a alcancei. Segurei firme sua cintura, e beijei sua nuca. A carótida pulsava rubra a meus olhos.
- Acho melhor pararmos por aqui Samael. Nunca traí meu marido, adorei nosso flerte, mas ... – Não dei ouvidos.
- Pare, por favor pare!... – tarde demais. Eu não iria parar. Virei-a de costas, em um movimento violento.
- Pare!! Vou chamar a segurança... – foram as suas ultimas palavras, pois tapei sua boca abafando seus gritos. Exercitei a Soberba. Achei-me onipotente, com total controle da situação. Abri minha boca, meus caninos proeminentes sentiram o ar da noite. Levantei o vestido de Malena, e soltei meu cinto. Senti sua pele quente contra a minha. Meu prazer seria completo, imaginei a sublime parada do musculo cardíaco, proporcionando meu êxtase.
“A hora da refeição é sagrada Samael, comporte-se”; dizia meu velho pai. Sete séculos depois, eu seguia as recomendações dele. Eu poderia ter me esbaldado com uma das bêbadas do festival, que estavam à disposição pelas ruas, mas escolhi com requinte, o melhor entre a gleba; por respeito à palavra de meu progenitor. Um espécime exótico, digno, sábio. Como se orgulharia meu pai.
Quando dirigi a mordida, a dor lacerante que senti em minha coxa desequilibrou-me. A dor era tão forte que soltei Malena. Olhei minha coxa e vi um dos palitos metálicos que prendiam os cabelos de Malena cravado superficialmente em minha perna esquerda. Uma dor intensa subia por meus músculos, e percebi que era um artefato de prata.
Mortal para mim.
Enquanto eu manquitolava em frente a uma janela, tirando o palito de prata da minha perna, Malena olhava-me com olhos enraivecidos, a “fúria espanhola”. Ela aproveitou meu momento de pavor devido à prata que entrou em meu corpo e me enfraqueceu instantaneamente, e empurrou-me contra a janela aberta a minhas costas. O vidro da janela estourou contra minha pele, e a gravidade fez o seu papel. Caí livremente sentindo o ar frio da noite, e ouvindo os gritos de quem passava pela calçada do hotel. Juro que vi o sorriso vingativo de Malena, debruçada na janela pela qual me jogara, de forma que a sorte a ajudou, ou seria melhor dizer que foi seu gosto por prata? Só sei que ela soube que eu era diferente depois que minhas costas estouraram contra a calçada, e mesmo assim levantei-me e corri, mancando com minha perna esquerda. Populares não acreditaram no que viam, e não ousaram se aproximar de mim.
Entrei em um beco escuro e fétido, e vi quando Malena abandonou a janela pela qual me jogara. Foi então que lembrei-me de ensinamentos ancestrais, desta vez, de quem me iniciou nesta “vida”:
“Sempre que for ferido por prata, verá que a ferida vai aumentar descontroladamente. Corte a carne e a pele ferida, até que seu sangue corra limpo, e que sua ferida comece a diminuir. A prata é altamente tóxica para nós, VAMPIROS.”
Comecei imediatamente, usando um canivete que sempre carrego comigo. A dor lacerante quase me fez desmaiar, mas eu tinha que aguentar. A carne fétida e pútrida que cortei da ferida crescente voou pelo beco, até que o sangue correu limpo, e o ferimento parou de aumentar. Em poucos segundos, a maldição fez o resto. A grande ferida começou a diminuir, e fechou por completo. Meu abatimento era tamanho, que o sangue de uma camareira vulgar teve que ser consumido para equilibrar meu organismo, quando voltei maltrapilho ao meu hotel.
Qual será o meu destino?
Como diria o velho padre, “só Deus Sabe meu filho”. Se irei para o céu ou para o inferno, só saberei quando pessoas corajosas como Malena conseguirem dar fim a minha vida, em um dos momentos em que meus instintos adquiridos suplantarem meus princípios cristãos.
Rubens Conedera
Texto e criação do autor, ao utilizar este texto, por favor, não se esqueça de mencionar a autoria.
2 comentários:
Deveras interessante.
Felicidades!
Abraço.
J.C.Hesse
Adorei o teu texto, Rubens. Cheio de mistério e sensualidade. Dá vontade de saber mais sobre esse interessante vampiro...
Bj!
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