Estou rodeado de curiosos. Eles olham-me e tentam encontrar piedade em seus êxitos para a desgraça impregnada sobre a estrada.
O meu dia hoje foi como outro qualquer. Coloquei as crianças para a escola e beijei minha esposa antes de deixá-la. Os meninos brigaram durante o trajeto e acabei por xingá-los de palavras que agora causam-me repulsa. Não a tempo de voltar atrás, tudo está acabado e aos poucos restam minutos de vida. Pergunto-me, e se. E se não tivesse disposto para ir trabalhar, se não tivesse seguido aquele caminho, se não tivesse parado no bar com um amigo, e se...
Nada importa mais. Entre os curiosos uma silhueta caminha silenciosamente envolta de um brilho. O mundo é tomado por uma escuridão e somente vejo-me a enxergá-la. Seu toque é frio como gelo e parece cortar minhas entranhas até o gotejar da última gota de sangue. O vermelho deixa meu corpo e atravessa a rodovia indo encontrar com aqueles que ainda gozam de vida. Aperto a mão erguida a mim e abandono para sempre meu corpo. Não quero olhar para trás, mas insisto em ver-me como minha família veria. O espírito de luz que agora sou não os ama tanto quanto antes. Desprezo o ser humano e os mergulho em minha angústia.
Estamos na faixa do acidente e meus olhos cruzam com o caminhoneiro sentado no acostamento chorando lágrimas de sangue. Deveria senti-lo ao passo que fora eu o causador de todo estrago. Sua vida também acabaria ali. Os noticiários citariam a prostituta morta e a esposa descobriria a traição. Seu veículo de trabalho passaria pela burocracia do seguro e talvez demorasse meses para recuperar a situação financeira abalada pelas luxúrias. Contudo era extinto qualquer sentimento de compaixão.
Enxerguei o limite entre o céu a terra. Sim, ele existe. Quando aproximamo-nos aquela que me conduzia virou-se e revelou a face singela sobre o capuz celestial. Ela apertou minhas mãos e pousou uma sobre o peito. Senti seu coração batendo sob sua pele. A pulsação era intensa e por um mero segundo acreditei ouvir o meu próprio lutando pela sobrevivência.
− Pode ouvi-lo batendo por você, querido? − Gritei um “sim” em resposta, mas não tinha voz. − Ele bate porque amo você. Amo e sempre vou amar.
A voz não era daquela mulher. Nas minhas lembranças permeavam o sussurrar suave de outros “eu te amo” ditos em semelhança. Abri os olhos e a vi. Minha esposa estava deitada sobre meu corpo suplicando a Deus. Ao redor aparelhos mantinham meu coração vivo.
− Eu também te amo, minha querida − sussurrei com a voz fraca.
Texto e criação do autor, ao utilizar este texto, por favor, não se esqueça de mencionar a autoria.
5 comentários:
Um texto repleto de flash back's devidamente ligados... e bem conseguidos!
Um texto que se lê de um fôlego!!
Se realmente é para ser o último suspiro, foi muito intenso, apaixonante e se me permite dizer, revelador!
Lindo colega, um escritor faz isso mesmo com um breve instante, eterniza.
Parabéns!
J.C.Hesse
Um flerte com a morte, interrompido pelo amor.
Renan demonstra sua maturidade e intensidade em mais um texto maravilhoso. Parabéns Autor!!!
Parabéns, Rubens, por sua conquista. Em breve lerei e farei a resenha de seu livro. Estou doida por este momento, pois o livro parece maravilhoso!
Um abraço,
Anna
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