domingo, 16 de setembro de 2012

AÍ TEM COISA

Estava na época das pipas e todos tinham conhecimento de que as varas de bambu davam as melhores armações.
O grupinho composto de dez crianças subiu o barranco até chegar ao bambual. Foram em um silêncio temeroso já que estavam invadindo as terras do Seu Carlos. Zé Eduardo, o mais velho, estava com o facão na mão para coletar os bambus. Nem bem chegaram, escolheram os que pareciam melhores e foram cortando.
Na atividade, o silêncio de criança deu lugar a uma algazarra de gritos e risadas. Primeiro foi o Manuel que soltou um arroto bem no meio da coleta. Sandra deu uma bronca no rapaz, mas se distraiu e ao pegar um dos bambus, acabou com uma farpa enfiada no dedinho. Se pôs a berrar. Desta forma uma voz foi puxando outra, até que eles faziam tanto barulho quanto uma reunião de passarinhos.
Tudo parecia ir bem até que Cássia deu uma pisada em falso e caiu em uma vala. Foi um "Deus nos Acuda". Ela berrando de lá, os outros gritando de cá. Foi preciso que Zé Eduardo desse um basta naquela algazarra.
- Vamos já parar com essa "barulhada" senão eu vou parar por aqui mesmo! - Gritou, impondo respeito.
Todo mundo ficou quieto. O menino, com seus quase dezesseis anos fora muito legal em ajudar os pivetes  e eles sabiam disso. Era melhor não abusar da paciência dele. Cássia saiu do buraco mas trazia algo na mão.
- Olha o que eu achei.
- O que é? - Perguntou curioso o Maurício.
A menina estendeu a mão e mostrou um pedaço de pano vermelho que parecia ter vida própria, como um coração pulsante. Todas as crianças se aproximaram maravilhadas. Estranhando o grupinho murmurante, Zé Eduardo enxugou a fronte com as costas da mão e ia perguntar o que estava acontecendo quando um silvo agudo quase lhe arrebentou os tímpanos.
- O que foi isso? - Perguntou uma das crianças, ainda com as duas mãos nos ouvidos.
Um minuto tenso de silêncio profundo dominou a todos. Logo depois, uma onda de assobios, semelhante ao primeiro, varreu o bambual fazendo com que todos corressem apavorados para fora dali, as mãos nos ouvidos, tentando proteger os tímpanos do som que cortava como lâmina. Cássia tropicou barranco afora e só não foi ao chão porque o Zé Eduardo apareceu ao seu lado e a puxou pelo braço. Ninguém se lembrou de coletar os bambus que haviam separado.
Quando chegaram ao campinho, já esbaforidos, deixaram-se cair na grama, sem entender o que havia acontecido. Todo mundo ficou quieto. Um outro lembrou que os bambus tinham ficado por lá. O silêncio de temor se transformou em silêncio de derrota.
- E agora, o que vamos fazer?
Ninguém respondeu a pergunta de Lígia e se deixaram ficar até que a voz das mães chamando pelos estômagos vazios carregou cada qual para sua casa. Cássia teve de ir tomar um banho antes do almoço já que estava suja de terra e barro. Quando foi se despir, tocou no pedaço de pano que havia encontrado lá nos bambus. Achou-o bonito. Decidiu que aquele seria, a partir daquele dia, o seu amuleto de sorte. Afinal o encontrou no mesmo dia em que Zé Eduardo a tocara, não é?
Puxou a cordinha para liberar a água fria, enquanto romanceava a fuga da turma. Ao se vestir, amarrou o pano no pulso, como se fosse um lenço. Depois foi almoçar o arroz com feijão, salada de alface e tomate, ovo e batata fritos e suco de maracujá. Encheu a barriga e se deitou na rede para tirar o cochilo da tarde. Por volta das três, Tânia e Semadar vieram chamá-la para brincar de queima coma turma que estava reunida no campinho. Meteu a conga no pé e se foi com as amigas.
Ficaram o resto do dia na brincadeira e, com uma energia que não acabava, adentraram a noite brincando na rua. Já eram tempos modernos. A rua já tinha luminárias apesar da estrada ainda ser de terra. Estavam assim entretidos na brincadeira, quando um vento incrivelmente gelado lambeu suas faces de supetão. Todo mundo estranhou. Estava muito quente e de repente, aparecia aquela baforada gelada. Repararam que o ar ficara terrivelmente tenso e estático, como se tivessem prendido com chiclete os ponteiros do relógio do tempo.
Lá no final da rua, viram quando uma das luzes se apagou. Depois outra, e a outra. Assim que uma se apagava,a anterior voltava a acender como se uma sombra estivesse avançando pela rua. Ela vinha se aproximando cada vez mais. Todos estavam apavorados mas se sentiam incapazes de mover um músculo.
- Eles vão pegar a gente!
O grito do Mamulengo se pareceu com o miado de um gato. As crianças começaram a chorar e gritar, os pés enraizados no chão de terra. A sombra foi se aproximando, aproximando até cair sobre eles.
Cássia se viu envolta na escuridão. Todos os seus amigos haviam desaparecido, apesar dela poder ouvir os choros e gritos das outras crianças. Um cheiro ruim de pinga e tabaco chegou às suas narinas. Quando olhou para a sua direita, viu o rosto de um rapaz negro, o branco dos olhos tão vermelhos que pareciam arde em brasas. Tentou gritar, mas sua voz não saia.
- Devolve!
Ela ficou em dúvida se tinha ouvido ou não algo, já que a boca dele não se movia.
- Devolve!
Colocou as mãos sobre os olhos, as lágrimas de medo correndo pelo rosto. Uma onda de assobios, semelhantes ao do bambual, recomeçou causando profunda dor em seus ouvidos.
- Devolve!
- Devolver o quê? - Gritou, sem saber o que fazer.
O negrinho apontou par ao pano que ela tinha amarrado no pulso. Ela arrancou o tecido e jogou nele, gritando:
- Toma essa droga e deixa a gente em paz!
No momento em que ele apanhou o pano vermelho na mão, meteu-o na cabeça como se fosse um gorro e depois de gargalhar uma risada infernal desapareceu em um remoinho de vento gelado.
Todos estavam novamente no campinho como se nada tivesse acontecido. Todas as luzes acesas, todos os ruídos do mundo em seu lugar. Só uma coisa estava diferente. Os cabelos de Cássia haviam se tornados tão brancos quanto a neve.


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