domingo, 9 de setembro de 2012

EFÊMERA

Este é o primeiro capítulo de um livro que está exigindo muita pesquisa para resolver um enigma. O que acham?


Abril
1
            Do lado da represa, no meio da floresta, existia uma pequena cabana feita de madeira que aparentemente era utilizada para guardar apetrechos de pesca. Não passava de um cubículo cheio de arestas com mais ou menos três metros quadrados.
         Indiferentes ao cenário à sua volta, dois homens se aproximaram descendo a trilha em direção à pequena construção. Um deles era moreno e alto, aparentando uns trinta e poucos anos. O outro, que parecia ser bem mais jovem, tinha uma estrutura mais delicada e fisionomia inteligente.
         Ambos eram de uma beleza impressionante. Do tipo que faz as mulheres virar disfarçadamente a cabeça e os homens repetirem entre si piadas sobre a sexualidade alheia.
Devagar, foram se aproximando em meio à névoa gelada da manhã conversando sobre banalidades quando pararam de forma abrupta. Surpresos, viram ao longe a porta de madeira da casinha se abrir e de lá sair uma jovem mulher.
         Antes que ela pudesse vê-los, os dois se esconderam por detrás das árvores num gesto instintivo. Não chegaram de fato a pensar em suas ações. Apenas estavam espantados com a aparição que adquiria um ar surreal naquele ambiente isolado.
         Muito à vontade, a mulher espreguiçou-se e ficou algum tempo admirando a paisagem. Deu uma espiada em derredor e depois tirou com cuidado a camisa branca ficando apenas de sutiã. Jogou a blusa sobre o ombro e voltou para a cabana.
         Emergiu logo depois carregando uma toalha em torno do pescoço, uma garrafinha de água mineral em uma mão, escova e pasta de dentes na outra. Agachou-se e pôs-se a escovar os dentes, olhando de vez em quando para o céu de forma pensativa.
         Negros e longos eram seus cabelos lisos que iam até o meio das costas deslizando por um corpo esbelto. A pele era de um moreno pálido típico de pessoas não habituadas a passar muito tempo ao ar livre. Além do lingerie, vestia uma calça jeans e um par de tênis parcialmente calçado nos pés.
         Terminado o ritual de higiene ela retornou para a barraca. Saiu poucos minutos depois já vestida com uma camisa rosa. O longo cabelo preso em um rabo de cavalo. Os tênis bem calçados e uma mochila nas costas. Subiu o barranco no sentido contrário ao dos observadores ocultos e desapareceu por entre as árvores.
         Intrigados, os dois que haviam permanecido escondidos até então, desceram ao local de onde a mulher partira e viram que o cadeado que lacrava a portinhola de madeira estava arrebentado.
         Relutante, o mais jovem invadiu o recinto arregalando os olhos para o cenário que se apresentava ante seus olhos.
         Abaixando a cabeça para não batê-la no vão da porta, o homem imitou o companheiro que o encarou incrédulo:
         - O que está acontecendo aqui? – Perguntou o mais velho.
         Dentro daquele local minúsculo encontraram todos os equipamentos de pesca organizados em uma pilha num canto de modo que na parte da frente do barraco sobrasse um espaço vago. Ali encontraram alguns livros, apetrechos de higiene, peças de roupa e um saco de dormir dobrado junto de um cobertor.
         - Será possível que ela esteja morando aqui? – Indagou o rapaz, incrédulo.
         Impulsivo, o homem agarrou um dos livros lendo distraidamente a capa enquanto falava:
         - É o que parece.
         Alguma coisa escapou do interior do livrinho surrado e caiu no chão. Era uma fotografia. Apanhou-a e mostrou para seu companheiro o retrato de outra jovem de cabelos curtos e castanhos, um pouco gordinha. Sorria com deboche, sentada sobre uma mureta, usando uma camiSeta branca e uma calça jeans surrada. Tinha uma latinha de cerveja em uma das mãos.
         - O que vamos fazer? – Perguntou o adolescente.
         Depois de recolocar a fotografia de volta no livro e devolvê-lo ao seu lugar o homem disse:
         - Antes de tudo é melhor que conversemos com o Ju. Ele deve saber que tem uma pessoa rondando por aqui.

***

         Arrastando os pés, passou pelas portas do prédio sentindo-se muito cansada. Nunca lavara tanta louça em sua vida. Ser auxiliar de cozinha não era uma profissão lá muito fácil. Massageou as mãos meio aferventadas depois de tanto contato com a água quente enquanto caminhava até o ponto de ônibus.
         Ao menos tivera a sorte do veículo passar logo. Sentou-se no banco frio e se pôs a revisar a lição para o outro dia. Se não sacolejasse tanto poderia se arriscar a escrever algo, mas achou melhor deixar para fazer isso quando chegasse na cabana. Tinha comprado novas pilhas para a sua lanterna então poderia estudar um pouco antes de dormir.
         Botou o caderno dentro da mochila.
Olhou para o relógio de pulso: já eram quase onze horas da noite.
Levantou-se e deu o sinal. Desceu do ônibus e esperou que este se afastasse antes de entrar na floresta. Não sabia bem por que fazia isso. Sempre esperava que o veículo desaparecesse na curva antes de entrar na mata. Tinha a impressão de que cedo ou tarde, alguém haveria de estranhar uma mulher sozinha entrando na escuridão verde àquela hora da noite.
Inspirou a noite quente e abafada. O cheiro da terra molhada indicava que não tardaria a chover. Acendeu a lanterna e tomou o caminho já conhecido. Já não tinha mais medo das sombras que se projetavam dos troncos ou dos sons indecifráveis que ouvia no fundo escuro.
Caminhava, porém, com cuidado. Os olhos pregados no chão de terra, vasculhando à procura de cobras. Os planos de estudos foram deixados de lado ao ouvir o som do primeiro trovão. Precisava armar o plástico para proteger-se das goteiras antes que a chuva viesse. Era tão burra! Já fazia tanto tempo que não chovia que havia se esquecido completamente disso.
Anteviu com alívio o vulto da casinha surgir no final do declive.

***

Ouviu as primeiras gotas de água tamborilar no teto de madeira tão logo terminou de estender a lona. Sentou-se exausta sobre o plástico que colocara no chão. O que não daria por um banho! Se alguém lhe tivesse dito um tempo atrás que estaria vivendo feito índio no meio da floresta teria dado boas gargalhadas. Tirou da mochila um saco de pãezinhos meio amassados, um embrulhinho contendo mortadela e, utilizando um canivete, fez um sanduíche que devorou em bocados intercalados de goles de água. Guardou com cuidado as sobras dentro de uma sacola de plástico para evitar o ataque de formigas.
Decidiu dormir depois de escovar os dentes utilizando um pouco da água da chuva recolhida em um caneco. Estava cansada demais para estudar o que quer que fosse. Tirou os tênis, a calça jeans, a camiSeta e o sutiã ajeitando-os cuidadosamente dentro de um saco plástico e vestiu um pijama composto por um shorts e uma camiSeta de alças.
Apagou a lanterna que deixava num suporte improvisado, feito de arame, que colocara no teto. Depois se enfiou no saco de dormir ouvindo a chuva lá fora.
- Amanhã. Amanhã eu acordo mais cedo e pratico um pouco. – Murmurou para si mesma no breu do cubículo pouco antes de adormecer.

***

Entorpecida pelo sono, em algum lugar de sua mente percebeu que ainda chovia. No tamborilar da água caindo ouvia-se junto uma sinfonia de grilos e sapos. Mas não era o barulho que a incomodava e sim uma sensação de frio. Levou algum tempo para perceber que estava completamente molhada.
Sentou-se de repente e compreendendo a situação abriu a porta com um chute. A água da represa subira tanto que estava invadindo a cabana. Num terror cego, agarrou o cobertor molhado, a mochila, os livros e tudo o que seus braços abarcaram e saiu correndo, a água já alcançando os tornozelos. Avançou barranco acima, escorregando na lama, o corpo sendo lavado pelas gotas intermináveis que despencavam do céu.
 Caiu por cima de suas coisas. Parte da queda sendo absorvida pelo cobertor que ela segurava contra o peito e que de alguma forma se enganchara em suas pernas. Sentou-se olhando para as coisas jogadas sobre o chão de terra. Arrastou-se até uma arvore próxima onde recostou as costas contra o tronco frio e úmido.
Recolheu puxando com o pé o cobertor encharcado. Seu corpo começou repentinamente a ser sacudido por pequenos movimentos até que finalmente ela jogou a cabeça para trás, gargalhando uma risada estranha, quase amarga. Ficou assim por um bom tempo.
A chuva foi diminuindo até cair fraquinha sobre sua pele molhada. 
Voltou a ficar em silêncio recostando a cabeça no tronco.
- Sou mesmo digna de pena. – Falou num fio de voz.
Imediatamente um clarão surgiu deixando-a ofuscada por um instante.
- Você está bem? – Perguntou uma voz masculina.
Desorientada, levou a mão ao rosto tentando barrar a luz da lanterna e vislumbrou o vulto de uma pessoa segurando um guarda-chuva. Levantou-se assustada ao se dar conta da chegada do estranho. Olhou para suas coisas ainda caídas pelo chão. Deveria sair correndo feito uma louca de pijama e deixar todos seus pertences para trás? Ter nada lhe pareceu ainda mais assustador do que ter pouco.
- O que esta fazendo por aqui? – O ouviu indagar.
- Eu... – Gaguejou, sem jeito. – Eu estava acampando aqui, mas com a chuva... Inundou tudo. – Levantou-se e, sem perdê-lo de vista, foi recolhendo seus objetos, morrendo de medo, cenas tétricas dos noticiários preenchendo sua mente. – Mas está tudo bem agora.
Ante os movimentos dela ele ficou em silêncio por alguns instantes. Depois perguntou num tom quase irônico:
- Você estava acampando aqui... Sozinha?
Ouvindo aquilo, não pode deixar de pensar que aquela era uma pergunta perigosa para se responder a um completo estranho. Quais seriam as intenções daquele homem?
Distinguiu o som de passos atrás de si e viu outro vulto aparecer também segurando uma lanterna e um guarda-chuva. Era um adolescente com talvez quinze anos. Não podia distinguir muito bem seus traços, mas lhe causava uma sensação bem menos ameaçadora que a do homem.
- O que houve Marcos? – Perguntou o jovem.
- Parece que estava acampada por aqui e foi pega de surpresa pela chuva. – Resumiu o outro com um tom de voz desprovido de emoção.
O rapaz a olhou com uma expressão tranqüila.
- Ah! Entendo.
Só restou aos três ficar em um silêncio estranho. O homem de um lado, o jovem do outro e a mulher parada, agarrada as suas coisas encharcadas, vestindo uma roupa suja de lama que mais revelava do que escondia seu corpo.
“Tou ferrada.”
Pensou se preparando para correr ao menor movimento abrupto.  
- Bom, não podemos ficar aqui a noite toda. – Falou, finalmente, o adolescente. – Moramos aqui perto. Se quiser, podemos ir para lá. Ai você pode usar o telefone e ver o que faz.
- Você acha isso uma boa idéia? – Indagou o homem parecendo estar receoso.
- Acha certo deixá-la aqui sozinha? – Falou o rapaz, pegando do chão uma camisa encharcada e indo até ela. – Pelo menos lá você pode ajeitar suas coisas e decidir sobre o que fazer. Não vai conseguir outra forma de ajuda a essa hora, mesmo porque, não existe mais nenhuma residência por perto.
Inquieta, ela ficou pensando. No final das contas não tinha muita opção. E com a aproximação do garoto, de certa forma, ficara um pouco mais segura. Ele tinha um ar afável e uma bela aparência.
Apesar desse reconhecimento não ser prova de antecedentes criminais, ambos se vestiam bem e aparentavam ser pessoas bem educadas pela forma como se expressavam. Não era bem a imagem que ela tinha de tarados ou assassinos que dormiam a noite a beira da represa. E no final das contas, se eles realmente quisessem lhe fazer algo ela não teria escapatória. Estava num local isolado, à noite, era fraca, miúda e nunca fora capaz de uma reação violenta na vida.
- E uma boa idéia. – Falou por fim. – Eu agradeço.
- Quer ajuda? – Perguntou o rapaz, estendendo as mãos.
- Não! Não! Que é isso? Está tudo enlameado. Não se preocupe! – Protestou, pegando a camisa que ele carregava de forma abrupta, envergonhada com a situação.
No meio dos dois foi andando protegida pelos guarda-chuvas, a cabeça meio enfiada no volume que carregava, morrendo de vergonha. Tomava muito cuidado para não tocar nos dois temendo macular de barro as vestes deles.
- Qual é o seu nome? – Perguntou o mais jovem, provavelmente, também incomodado com o silêncio.
- Eu? Eu me chamo Alice. E você? – Respondeu com a voz um pouco abafada por estar com o queixo enfiado no cobertor encharcado.
- Eu sou Set. E este... – comentou indicando com a cabeça o homem que caminhava em silêncio ao seu lado. -... É Marcos.
- Você veio para cá sozinha mesmo? – Insistiu esse último de supetão.
Descartando a pergunta, ela se voltou para o mais jovem.
- Fica muito longe a sua casa?
Indicando com a mão livre adiante, ele apontou para luzes amareladas que de quando em vez surgiam entre as folhagens.
Os poucos metros que andaram foram se tornando pesados para Alice devido ao ar de desconfiança que sentia vir de Marcos.
Sentiu um imenso alívio quando as pequenas luzes se abriram para eles revelando uma rua e a casa logo adiante.
- Estamos chegando. – Falou Set. 

5 comentários:

renatocinema disse...

O inicio agradou.

renatocinema disse...

Bom primeiro capítulo

Gislene Vieira de Lima disse...

Obrigada pela opinião. ;)

Márcia de Albuquerque Alves disse...

O Primeiro capítulo já instiga!

MODO Editora disse...

Gostei Gislene!
Uma performance diferente dos trabalhos que já fez.
Parabéns!
Adriana

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